Buonasera, meus amores.

Sua espécie é tão linda, tão pequenina, tão frágil, e tão poderosa... a fragilidade é um poder, sabiam? Vejo vocês e lembro desse bailarino de vidro que uma vez conheci e tive o privilégio de ver dançar. Vejo vocês e lembro de um balé mortal, fabuloso, hipnotizante, que promete um fim súbito, mas enquanto isso segue dançando e dançando, para todo o sempre...
Chegamos à conclusão de que o melhor dia para nos apresentarmos a vocês seria o dia de hoje. O eleito dia da mentira. Pois é, certas luzes são tão brilhantes que não se deve encarar a olho nu da primeira vez. É assim em quase todo lugar, especialmente onde nossas histórias mais parecem fazer sentido; em planos como esse, onde ao invés de dançarinos de vidro temos pensamentos de pedra e uma realidade de aço e concreto, linda também, mas pesada demais para se carregar a vida inteira, não é mesmo?
Para lidar com o mundo, para saber transformá-lo ou tentar torná-lo mais leve, convidamos vocês a flutuar por outras possibilidades. Por planetas de contradições e incoerências, onde a gravidade nos deixa mais leves. Venham conosco para realidades que são palco do impossível, do que não faz sentido, das coisas que não são obrigadas a nada. Onde não se segue nenhum conceito além de criar palavras e imagens para que entre elas se avolume um abismo. No abismo, quando o destino sorri, habita aquele silêncio esplendoroso — o único que, nesse magnífico espetáculo de horrores, talvez tenha algo a dizer.
Estaremos aqui — eu e uma extraordinária equipe de jornalistas, cronistas, cientistas, exploradoras, críticos, poetas e até alguns publicitários — juntando para vocês histórias de infinitas dimensões, verdades que acabaram de sair do forno, relatos profundamente sinceros de gente que nunca existiu (*piscadinha*), matérias que habitam outros fios da teia de possibilidades. Dessa teia nascem os melhores tecidos, e é do nó entre os fios que nós viemos. Esse nó que se desfaz toda manhã depois de um sonho feliz. É para lá que gostaríamos de levar vocês. É lá que eu te espero, com propostas, experimentos e muita extravagância extraplanar.

Venham mergulhar.
Ass,
Ms. Anne Abîme

Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Mariana Cheniaux
2021
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Apego
A forma que alguns encontram de seguir ficando por aqui é através das coisas. Coisa tem memória, e mesmo que o apego seja uma luta que não se pode vencer, existe sempre a jovial esperança de que ela possa ser travada eternamente.
Apego é o sofrimento do sortudo. A falha dos felizes. Vem com a sina de cercear o futuro. O oceano da possibilidade é drenado até restar um aquário de revisitações. Nele tudo é escolhido, harmônico e coeso. Apego nos faz esquecer que há muito mais; o que o aquário tem, lhe satisfaz. Doce estagnação.
O apego a longo prazo deixa seu legado. Belas paisagens e poemas indecifráveis, antigo lar do pedaço de uma alma.

Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Mariana Cheniaux
2021
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O Troll Cósmico
Era curioso, a ponte temporal já não parecia a mesma de antes. Havia... mais realidade infusa nela. Uma vibração multiplanar mais agradável. E, além disso, agora transmitia uma sensação de solidez que tocava até a quinta dimensão. A última vez em que passara por ali havia sido uma jornada turbulenta, mas pelo visto alguém havia assumido a manutenção da ponte, e fez um trabalho primoroso.
Então, vi o responsável caminhando devagar em minha direção, como uma avalanche em câmera lenta, e xinguei baixinho.
O troll cósmico era uma visão massiva: um pedregulho da cor e da textura de granito, com pilastras colossais como pernas e braços, e a cabeçorra, que mais se assemelhava com uma escultura cubista mal lapidada, coberta por uma cabeleira pontiaguda feita de cristais de gelo. Essa, diga-se de passagem, era a grande diferença entre os trolls cósmicos e seus primos das colinas e das cavernas; enquanto os outros viviam com os cérebros de prata, silício e lítio eternamente super aquecidos — tornando-os lentos, obtusos e coléricos —, a espécie evoluira para formar uma crosta gélida que refrigerava o material supercondutor no interior das cabeças. Suas mentes eram tão aguçadas que a engenharia de pontes físicas não lhes proporcionava nenhum desafio intelectual — apesar de ainda compartilharem desse instinto peculiar de todos os trolls. Assim, haviam migrado para projetos mais ambiciosos.
A criatura abriu um sorriso que mais parecia uma fenda abarrotada de estalactites e estalagmites.
— Bom dia, boa tarde e boa noite, madame. — Disse num vozeirão grave como um terremoto. — Tá vendo como a ponte tá linda? A passagem pros Buracos de Minhoca também tá um “brinco”. Pode seguir viagem tranquila, madame, que não vai se arrepender.
— E quanto está o pedágio, meu bom troll? — Esse era o problema, havia sempre um preço, e muitas vezes alto demais...
— Bom, madame, tá baratinho. Precinho simbólico. Tá custando só uma mísera lembrança da infância. — Notou o meu desgosto, e continuou no mesmo compasso. — Mas nem precisa ser uma feliz, não, moça. Vixe, já tenho até demais dessas! Pode até ser um trauma, ou uma memória triste, coisa ruim que não faz falta. O povo pensa que só quero as alegres, as preciosas, mas não é assim, não. Todas têm o seu valor.
Foi tentador deixar para trás algo traumático. No entanto, acredito que meus momentos tristes tiveram tanta importância em moldar quem sou quanto os felizes. Talvez até mais. Não estava disposta a deixar algo assim para trás.
— E que tal uma indiferente? — perguntei.
O troll hesitou.
— Você disse que toda lembrança tem o seu valor — continuei. — E aposto que também não deve ter nenhuma dessas, não é?
Ele pensou por um breve momento, depois assentiu, sorrindo.
Separei uma memória ambivalente em minha mente e entreguei-lhe. Não tenho mais como saber do que se tratava, mas segui viagem com a sensação de que havia feito um bom negócio.
Escrito por Rafael Sanges e ilustrado por Ana Coelho
2021
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Akashi Der
Chamam-no de Akashi Der, o Buraco Branco. Um furo no tecido da realidade. Nada — nem matéria, nem energia, nem espírito — é capaz de resistir ao esplendor de sua luminosidade. Logo crescerá, irrefreável, consumindo a existência por completo.
E é tudo nossa culpa…
Quando o Messias, nosso profeta, nosso salvador, nos incubiu de extirpar da face de Gaia aqueles que resistiam, os divergentes, os incrédulos, nós obedecemos sem questioná-lo — embora tenha sido como se uma mão negra se fechasse sobre nossos corações. Bilhões de almas ceifadas da existência pela Arma Proibida; despidas para sempre da dádiva do renascimento.
Os mais sábios de nossos filósofos-clérigos alertaram que isso poderia desenredar a própria realidade! Contudo, ainda assim, não levantamos objeções. Pois se nosso salvador, nosso profeta fosse falso, o que isso faria de nós? Como poderíamos justificar as atrocidades que realizamos em seu nome?
E, assim, o Fim dos Tempos bate em nossa porta. E não há mais nada que possa ser feito. O esquecimento eterno é inevitável.
Akashi Der se expandirá para além da compreensão até mesmo dos deuses. Então, Guyra Kê, o Pássaro-Sonho, o tomará como ninho, e nele depositará o Ovo Cósmico; a semente para o nascimento de um novo universo.
Só espero que seus filhos sejam mais sábios do que nós fomos.

Escrito por Rafael Sanges e ilustrado por João Costa
2021
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Se eu me prolongo, é porque me importo.
I stick around because I care

Se eu me prolongo, é porque me importo.
Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Ana Coelho
2021
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Lançamento: Contos Volúveis

Estreia amanhã Contos Volúveis — nova obra transmutável de Uvewix Ogast, mente arcana por trás do abismático sucesso interdimensional Era Uma Vez Um Era Uma Vez.

Hoje é esta a sinopse oficial na contracapa da obra:

"No começo, havia Nada. Nada se entediou e criou Caos. Caos se entediou e fez Ordem. Ordem não se identificava com caos, portanto fez Vida. Assim vieram os Seres. Eles, por sua vez, também se insatisfaziam na presença das criadoras, então começaram a inventar histórias. E delas nasceram os magos, que, como todos sabemos, conjuram criaturas. O que você verá aqui é a história dessas criaturas. Mas leia rápido! Antes que elas se entediem e criem alguma coisa…"

"Dessa vez Ogast nos libertou de todos os limites da percepção." – Morrison, vocalista da banda The Dumble Doors

"Assustador! Fiquei eras sem dormir!" – Satã

"A melhor coisa é que nunca termina." – George R.R. Martin
Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Mariana Cheniaux
2021
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Morreu Num Domingo

Meu pai era pediatra, mas a alma era de poeta e palhaço. Era o alvo predileto das chacotas de bar dos amigos e não se importava nem um pouco. Me dava uma certa vergonha.
Hoje é graças às piadas que ele ainda vive, e aos poemas. Esse foi o último que ele escreveu. Se chama 'Morreu num domingo': 

Não há por que sentir pena de mim;
aqui onde estou, carnaval não tem fim.
Onde o chope é de graça, não existe desgraça,
e eu colecionei domingos assim.

Sintam pena só de quem fica,
levo comigo uma farra que abunda.
Rogarei por vocês, como a praxe indica
Tenham força. Afinal, amanhã é segunda.
Escrito por Renato Baroni e ilustrado por João Costa
2021
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Cão
Noutra vida fui cachorro.

Às vezes, quando sonho, volto pra lá. Depois que abro os olhos as lembranças dissolvem, mas a certeza fica que nem pedra. Noutra vida fui cachorro.

É muito como ser criança. O corre-corre, o estar presente, o sentir tudo, o intuir perigos, o estar de peito aberto. O cachorro morre na infância. A idade do corpo engana, porque a verdade é que toda alma envelhece no mesmo compasso. É matemática simples: o acúmulo de experiências contra o tempo. A alma da mosca morre recém-nascida. A tartaruga e o papagaio bem-vividos se vão sábios, embora jamais tão sábios quanto a rocha e a montanha.

Alguns humanos partem ainda naquela idade em que se pensa saber tudo. Outros, pouquíssimos, engatinham para a próxima. Sobre ela, infelizmente nada se alcança com palavra. É preciso certa vivência. Alguns têm a sorte de tê-la em sonho e lembrar dela e lembrar que é sonho; que é vivência de outro plano. Outros sonham e esquecem que foi sonho. Chamam de loucos, eles que chegaram lá e voltaram, com algumas paredes a menos; mas voltaram. Os que dão risada, que debocham de quem foi lá, que não chegam nem perto de entender, esses se forem até lá não voltam mais. Quando forem.

Eu fui e voltei. Com umas paredes faltando, quem sabe, ou uma ripa da cerca fora do lugar, porque me esgueiro pela fresta e vejo a grama verde e rente no jardim vizinho agasalhada no orvalho reluzente da luz da manhã, farejo a simplicidade de outros tempos e recordo com clareza e saudade absolutas como foi bom ter sido cachorro.

Escrito por Renato Baroni e ilustrado por João Costa
2021
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Fogo
Todo o resto é fumaça
e projeção
Mas é tanta fumaça
que a vista embaça
tropeço nas sombras
que viram fossa
que vira mar
e eu afundo
sem encontrar
o fogo
Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Gui Snow
2021
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A Sentinela
Aruana se concentrou, inspirando profundamente, e partilhou a mente.
Uma singularidade surgiu no espaço entre os pensamentos, consumindo sua angústia, preocupação e receios. Existia somente ela e as três estacas de madeira ao seu redor. Sentiu o cheiro delas, ouviu o ar acariciar sua aspereza, fitou as falhas ocultas. Então, golpeou. Três movimentos rápidos. Um momento se passou antes que soasse o estrépito dos pedaços partidos se chocando contra o piso.
Aruana escutou passos e a singularidade se dissolveu.
— Eu te vejo, esposa — disse Kauê, seus olhos constrangidos. Sabia que ela não desejava ser interrompida.
— Eu te vejo, luz do meu coração — respondeu, serena, e ele respirou aliviado. Tinha boas intenções e ela não desejava consterná-lo mais.
— Peço perdão, mas mais notícias chegaram. O Triunvirato avança. Piatã e Jandir caíram e Rudá se entregou antes da horda surgir perante suas torres. Nosso é o último bastião dos Jaciari.
— O Sonho chega ao fim para todos. — Ainda assim foi doloroso ouvir.
Kauê hesitou.
— Deveríamos seguir o exemplo de Rudá, esposa. O Triunvirato traz grandes mudanças, mas também paz e prosperidade. São amados pelo povo. Por que não nos rendermos?
— Marido, por favor, não mais… — O rosto de Aruana não traiu sua irritação.
— Não, luz do meu coração! Você planeja partir nossa família. Por quê? Por orgulho? Não vê—
— Kauê, já basta! — Sua voz estalou como um chicote.
— Sim, esposa — rangendo os dentes, ele obedeceu.
— Vá, reúna nossos filhos. Irei me despedir antes que partam.
Kauê estava certo. O Triunvirato — Sheva da Liberdade, Braam da Solidariedade e Vishu da Igualdade chamavam a si de libertadores, embora conquistassem, impiedosos, empunhando a espada da paz. O povo os idolatrava e era inegável que sob seus passos a prosperidade florescia. Aruana não era cega. Sentiu o frio toque do pesar, mas o esmagou, sem dó. Não era uma questão de orgulho. Era uma honra servir aos Jaciari. Treinara desde o berço para tal, qualquer orgulho fora despido pelas primeiras cicatrizes. Honra era tudo que sabia. Abrir mão disso seria como deixar de existir. Um destino mais cruel que a morte.
A vida era um sonho, Aruana não temia o despertar.
Escrito por Rafael Sanges e ilustrado por João Costa
2021
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Cesta
Fazer da vida uma cesta. E saber que ela às vezes pesa, e que você precisa esvaziá-la se quiser carregar novas coisas. Acabei de tornar a minha um pouco mais leve. É um ato cada vez mais suportável, porque quanto mais você faz isso, esvaziar e preencher, a cada dia a cesta vai ficando mais do seu jeito, mais única. Mas nunca vai ser fácil.

Me ajuda pensar que vida e memória são duas coisas distintas, quase duas vidas, ou uma é vida e outra é sonho, e que se a vida é uma cesta então memória é a mão que escolhe o que entra e o que sai, o que vale e o que não, porque ela se lembra das coisas que antes ocuparam a cesta. Ela fica cada dia melhor no trabalho dela graças a tudo que um dia esteve ali e, embora já não esteja mais, de uma outra forma sempre vai estar. Como uma farpa no dedo ou uma sujeirinha na unha.

Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Ana Coelho
2021
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Gehena
Gehena é um plano oscilante de caos.
Um mar de matéria ilógica ondulando eterna e selvagemente como mercúrio fulgurante, numa tempestade que se recusa a seguir qualquer espécie de norma. Desejo e vontade afetam a composição de sua realidade, esculpindo o caos através do pensamento e da memória.
Existe uma única cidade neste estranho lugar: Nix, uma ilha feita de escuridão; ruas, construções e monumentos delineados sutilmente por traços suaves que lembram a luz das estrelas num céu noturno. A solidez de Nix só é adepta a um semblante de ordem perante o oceano caótico que a cerca.
Conforme andava pelo labirinto impermanente de seus caminhos, as configurações rarefeitas ao meu redor tremeluziam e balançavam de acordo com as inflexões das minhas ideias.
Seus cidadãos são muitos e apenas um.
Uma grande mente singular é a artista e a progenitora da Cidade da Noite. Aparece de tempos em tempos — um conceito diluído numa realidade como esta —, como um enorme Sol, prontamente sugando e consumindo Nix, para em seguida regurgitá-la como uma nova cidade, completamente diferente da anterior.
— Haviam treze de nós no início — aquela estrela me contou numa voz como a aurora. — Eu, minhas irmãs e irmãos moldamos a totalidade de Gehena, criando vida e guiando histórias assim como desejávamos. E, então, viemos a conhecer a nós mesmos, e a conhecermos uns aos outros. Foi um tempo em que a Unidade imperou, suprema. Até que uma porta foi encontrada para outros mundos; mundos que já eram... livres, sólidos, e que não seriam apenas em razão de nossa vontade. Existiam eles antes da porta ser encontrada ou nasceram a partir da descoberta? — Sua risada era deleitosa como o pôr-do-sol. — Não importa. A maioria de nós desejou deixar Gehena para explorar novas possibilidades. Vamos além sentir; vamos além aprender; vamos além conquistar. Nós nos tornamos divididos, e nosso Eu coletivo foi estilhaçado. Aos poucos, um por um meus irmãos e irmãs se foram. Agora, somente eu permaneço.
— Mas por que você escolheu ficar? — perguntei.
— Bem, a verdade é que eu sempre preferi minha própria companhia.
Escrito por Rafael Sanges e ilustrado por Mariana Cheniaux
2021
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Deserto
A areia te ensina a não pensar tão longe. O vento de amanhã é quem diz como serão as dunas de amanhã. Se planejar num mundo de horizonte ondulado, essa é a grande miragem.

É o oásis que decide quando vai até você. Seu trabalho é estar vivo, e mover as pernas. Torcer para a água estar refrescante quando enfim for encontrá-la. Jogar a isca do sonho, lembrar de mexer ela de vez em quando, pra cima e pra baixo, prum lado e pro outro, sempre a ilusão do movimento. Sempre de volta ao mesmo ponto. Esperando em círculos, seguindo as pegadas que já deixou e as que irá deixar.

Quem tá perdido, perdido de verdade, não tem como caçar a vida. Ela não deixa rastro, e qualquer ilusão disso são promessas de areia. A única solução é ir pescar.

Escrito por Renato Baroni e ilustrado por João Costa
2021
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Charlatã
Tenho sempre o cuidado de deixar brecha para a dúvida. Caixas, capas, cartolas, espelhos, fumaça, varinhas, coisas à mão para que eles olhem e pensem: "Ah, deve haver ali um fundo falso" ou "truque de ótica, só pode." É batata: se descobrem que é tudo verdade a curiosidade e admiração podem até aumentar, mas lá se vai o encanto. O que me interessa é justamente essa faísca de fascínio e dúvida que acende, por um mísero instante, nos sorrisos sinceros de quem foi pego de surpresa pelo que é e o que não é fazível; aquele segundo inconsciente, quase vergonhoso, em que as mentes se esticam de imaginar as mil e uma outras façanhas realizáveis que até então não passavam de abstrações. Nesse pequeno momento de insanidade, elas são felizes.
Aprendi que o brilho dos olhos é reflexo do impossível.
Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Ana Coelho
2021
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Andarilha do Planos
Eu já ouvira muito falar sobre outros como nós, colegas de espírito percorrendo o multiverso atrás de experiências e sensações. A primeira vez que me deparei com uma dessas almas irmãs, no entanto, foi ao encontrar a Andarilha dos Planos. Um ser singular, como nenhum outro que meus olhos já haviam visto! Fitar o seu rosto etéreo era como enxergar além da mortalha do multiverso; mundos inteiros pareciam fluir e bailar naquela face cambiante, flutuando em torno de olhos atemporais e imperscrutáveis.
Ela estava fugindo, desesperada.
Contou-me sobre a besta que a perseguia. Implacável. Não importava o quando e onde a Andarilha fosse — as eras mais remotas, os recantos mais obscuros do multiverso —, a besta sempre seguia em seu encalço.
Já se passavam eons desde que a terrível perseguição tivera início. Somente após incontáveis anos tateando às cegas e grandes sacrifícios, por fim, a Andarilha compreendia a maldição lançada sobre si. A Caçadora Primal não conheceria paz até que consumisse o coração de sua presa, e nenhum lugar da criação estava a salvo de sua selvageria. Nenhum homem, deus ou entidade era capaz de suster sua fúria.
Havia apenas uma forma de enfrentá-la: fogo contra fogo.
A Andarilha não quis me dizer mais, e insistiu para que me afastasse. Contudo, decidi segui-la como uma pequenina pulga escondida atrás de seus pensamentos. Não descreverei o lugar pernicioso para o qual fomos, nem o nefasto ritual que se seguiu. Cada átomo, cada partícula da Andarilha foi pervertida além do que imaginei ser possível. Ela se permitiu tornar uma besta tão temível quanto sua perseguidora. Dentro da cabeça da Caçadora, entretanto, confinada num cárcere de trevas, a Andarilha, enfim, estava em paz. Havia apenas um mandamento: caçar seu algoz antes que este partisse em seu encalço.
Num piscar de olhos, a besta seguiu para um outro momento, num mundo idílico; um paraíso tão belo quanto qualquer outro que já vi. Em sua prisão escura, a Andarilha foi tomada por uma sensação de reconhecimento. Então a Caçadora fitou o rosto de sua presa: a face etérea e os olhos atemporais…
Impotente, Andarilha pode apenas gritar horrorizada.

Escrito por Rafael Sanges e ilustrado por João Costa
2021
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A Musicista
Destino é um conceito peculiar, além de volúvel ao longo do multiverso.
No epicentro da criação, lar das realidades deterministas, é simplesmente uma questão de consequência. Sólido e imutável, desprovido de personalidade, rebento do acaso. Conforme nos afastamos rumo aos confins mais caóticos dos planos, o Destino passa a romper os grilhões da causa e efeito, tornando-se mais fatalista, consciente e ativo em seus planejamentos.
Este foi o caso de Lin.
Uma linha singular no padrão tecido pela Roda dos Tempos, Lin foi tocada pelo destino antes mesmo de nascer, predestinada a se tornar uma das maiores musicistas que seu planeta já teve o prazer de celebrar. Todavia, o acaso a marcou no nascimento com uma deficiência auditiva, desde a concepção era incapaz de processar qualquer espécie de som. Noutro lugar aquilo seria o final dessa história, o Destino daquela realidade, contudo, preferiu reagir de maneira criativa.
O magnetismo dos instrumentos veio desde a infância, as próprias notas conduziam os dedos de Lin intuitivamente, guiando-a através de seus sentimentos; melodias brotavam de sua boca com as águas cristalinas e deliciosas de uma fonte inesgotável, canções que conjuravam narrativas e personagens fabulosos no olhar de sua mente.
Ao passo que a paixão e habilidade da moça cresceram, tais imagens e conceitos começaram a se manifestar visualmente no mundo ao seu redor — cores, formas e movimentos cintilando, dançando e interpretando melodicamente conforme o ritmo de sua performance.
Algumas pessoas sentiam pena de Lin por ser incapaz de escutar os arranjos belíssimos que ela mesmo criava. O que não compreendiam é que ela absorvia e sentia a música como qualquer um. O resultado em seu coração era semelhante — às vezes idêntico —, apenas adentrava por um outro caminho às portas da percepção.
Destino e percepção, temperos inusitados que polvilham o sabor do multiverso.
Escrito por Rafael Sanges e ilustrado por Ana Coelho
2021
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Vida de Capanga
Vida de capanga não é um passeio no parque. Tem que se entregar de corpo e alma, botar suas fichas todas na causa do patrão. (O mundo anda precisando de uma sacudida, né não? Uma nova ordem mundial!) As competências vão de manejo de veículos pesados a manutenção da banheira de piranhas assassinas — e se der um pio errado no meeting, o chefe aperta um botão e sua cadeira vira um tobogã direto pra banheira, sem seguro desmembramento. E quem mantém o tobogã limpinho? O capanga, é claro... Aos ditos "inimigos", ah, pra eles estão reservados os melhores quartos, as melhores refeições, e a chefia ainda explica o plano — hoje ele chama de pipeline — explica a pipeline de dominação mundial todinha com uma paciência que não se estende a nós.
Os direitos são poucos. As horas só aumentam. Mas também que tempos são esses, cê me entende? Eu lembro bem por que vim parar aqui: revolta. Uma raiva tremenda desse mundo que só anda pra trás. Se não tá fácil nem pra chefia, quem dirá pra nós. E o chefe olhou pra gente, disse o que queríamos ouvir, fez umas promessas, e hoje a gente está aí, né. Agora, depois de um transplante dentário e bastante trabalho sujo, é meio tarde pra voltar atrás.
Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Ana Coelho
2021
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Errata
Na edição passada dissemos aqui que a obra artística favorita do Ministro das Relações Exteriores russo era Toy Story. Trágica falha de audição de nosso repórter, quando na verdade o Ministro se referiu ao conjunto de obras do escritor Liev Nikoláievich Tolstói. Já viemos a público esclarecer o erro, e pedimos novamente nossas mais sinceras desculpas pelos danos causados à imagem do Ministro.
Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Mariana Cheniaux
2021
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A velha na calçada (ou Ciclo sem Fim)
Tá tudo bem com a senhora, disse, enfim, o paramédico depois de toda a comoção. A velha circulou os olhos pela rodinha que se formou ao redor. Tinha plena capacidade de se levantar; mas pra quê? Tentou recordar a última vez, todos esses olhos novos, sedentos — e daí que a sede é de tragédia? No momento olhavam para seu corpo. O corpo velho só tem valor deitado, se esvaindo.
Já é invisível faz tempo. Dizem que o que se colhe é o que se planta, mas nem tudo somos nós que plantamos. Não seríamos nós mesmos plantas, plantadas por outrem, em solo não escolhido, germinando e apodrecendo?
Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Ana Coelho
2021
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A Titânide
A primeira vez em que vi a titânide sentada sobre montanhas fiquei mesmerizado; tomei-lhe por um monumento esculpido por algum imenso poder já há muito esquecido.
Contudo, eu já perseguia uma outra história, e quando, por fim, minha busca alcançou seu desfecho, precisei deixar aquela realidade às pressas.
Quando retornei, anos haviam se passado na minha história, e séculos naquele estranho mundo verdejante. E eis que lá estava a titânide, ainda se avultando sobre a mesma imponente cordilheira. Desta vez, porém, erguia-se de pé, trespassando o firmamento — seus cascos colossais acobertados pela natureza que florescia para escalá-los; sua sombra se estendendo para além do horizonte.
Foi só então que compreendi.
Tomado pela curiosidade, expandi meus sentidos para lhe tocar a mente — tão vasta, capaz de tantos pensamentos simultâneos —, e quase tive minha consciência estilhaçada em uma infinitude de fragmentos. Era grande demais para compreender.
Através dos seus olhos eu vi um mundo diminuto, encapsulado por uma névoa rarefeita e cercado por um eterno céu cinzento e cintilante. Seu escopo era maior do que qualquer coisa que pudesse conceber.
A existência de seres como eu era insignificante para a titânide; civilizações surgiam, floresciam e declinavam antes que seu olhar sequer as captasse. Vida e morte não passavam de grãos microscópicos em meio às areias do tempo. Ela e o planeta eram um só, e parte dela estava em todos os lugares de uma vez.
Esteve lá no início de tudo e estaria no final.

Escrito por Rafael Sanges e ilustrado por Mariana Cheniaux
2021
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Passatempo
Após o jantar, subiram até o apartamento dele.
Abriram um vinho e sentaram-se na varanda. Ela sentiu um calafrio delicioso percorrer a sua espinha quando ele a beijou. Os seus lábios estavam frios, porém uma quentura reconfortante espalhou-se dentro dela.
Ele pediu para tirarem uma selfie juntos. Ela reagiu com um muxoxo acanhado antes de aceitar, contudo, por dentro, a ideia daquele registro lhe encantava.
Mal pôde acreditar quando ele entrara em contato depois de tanto tempo. Seu riso musical e confiante continuava o mesmo, mas ele havia mudado; estava mais magro e pálido, ainda assim, de alguma forma ainda mais atraente. Havia algo de novo também em seu olhar, uma intensidade faminta a qual não existia antes. Quando se encontraram no início da noite, os olhos penetrantes dele a haviam deixado desconcertada. Ali, no entanto, ela estava se maravilhando com o desejo estampado neles.
Sentia-se nas nuvens.
Mais tarde, saciado, ele sorriu admirando a bela foto que tiraram em seu celular. Quando vivo sempre foi um dos seus passatempos favoritos fotografar-se perante belas refeições, agora que estava morto não via razão para deixar o costume de lado.

Escrito por Rafael Sanges e ilustrado por Marina Benigno
2021
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Francisco e a Metáfora
Seu Francisco despertou da soneca e se viu preso, literalmente preso, dentro de uma metáfora.
A primeira coisa em que reparou foi a imobilidade das pernas e braços. Viu que a causa era a extensa flora selvagem se apossando visceral e figurativamente de todos os membros. A completude de sua estagnação ia ficando mais clara à medida em que a situação se mostrava mais confusa. Percebeu que, além da vegetação nas encostas, a metáfora tinha também micropessoas, um povo pequenino que a largos passos ia crescendo de uma colossal inconveniência para uma singela civilização. A comunidade ribeirinha que se acomodara nas lágrimas do desespero de Seu Francisco logo tornou-se um vilarejo de médio porte. Adaptaram seu umbigo para funcionar como aterro. A depressão que percorre a coluna vertebral serviu muito bem de sistema irrigatório, e com isso certas regiões como a lombar e as gordurinhas do quadril foram valorizando, e a especulação imobiliária prosperou como uma verruga maligna perto do ombro direito que coçava mais a cada dia. Só que não se pode coçar uma metáfora, então Seu Francisco ia deixando tudo passar à espera de um milagre ou de um dilúvio, e enquanto isso a cidade crescia ao ponto de literalmente já não caber mais nele e ir subindo, desaparecendo pelas próprias ruelas, pelas próprias contradições, atingindo um ápice de insustentabilidade tal que fez explodir na mente de Seu Francisco um instante de eterna lucidez, como esses momentos de paralisia do sono, e isso fez Seu Francisco pensar nas imutáveis Leis de Newton, sobretudo aquela que diz que corpos inertes tendem a permanecer inertes, metáfora perfeita para a situação extremamente real que estava vivendo.
E assim, meio que de uma vez só, a metáfora chegou ao fim. Desmoronou, como aquela pessoa que constrói um discurso tão longo que quando se dá conta já perdeu os alicerces da fala. Seu Francisco agora tem pavor de metáforas, porque desde então ele não sabe mais se o que sustenta as ideias é elas fazerem ou não fazerem sentido. Nas palavras do próprio, deve-se desconfiar das metáforas como se desconfia do vendedor que não diz logo de cara a que veio.
Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Mariana Cheniaux
2021
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Iara
Amana imaginou o quanto das águas do lago eram lágrimas suas.
Após uma vida inteira praticando o auto engano, despejando sua tristeza e dor naquelas margens, sentia-se como se aquele corpo de água fosse parte dela.
Lembrava-se bem da primeira vez.
O reflexo de uma jovem — bela e forte, mas tão frustrada. Suas lágrimas escorriam tanto por raiva como por tristeza. “Nunca mais!” havia jurado — assim como ele naquele mesmo dia. Contudo, tais promessas não duraram. A essa altura, porém, ela já havia engravidado. “É pelos meus filhos” convenceu-se, e, com o passar dos anos, a raiva e indignação foram esmaecendo, até que apenas a dor restou.
Agora, via apenas o reflexo de uma mulher velha e abatida naquelas águas escuras; cabelos brancos, pele castigada pelo sol, lábios ressecados e olhos marejados marcados por rugas, apenas a tristeza permanecia semelhante à jovem do passado.
Mais lágrimas caíram sobre a superfície do lago e as ondinhas subsequentes desfiguraram seu reflexo. Quando a água se acalmou, a imagem havia mudado; era jovem novamente e sorria com uma doçura há muito perdida.
— Venha, Amana — escutou a imagem chamar seu nome com uma voz cristalina. — Você já deu tanto de si para mim, este é o momento de retribuição.
Em seu mundo invertido, a Amana moça esticou o braço para tocar a superfície, e a mais velha reproduziu o gesto do seu lado. Na película espelhada as pontas de dedos enrugados e lisos se tocaram. Amana sentiu um arrepio frio percorrer sua espinha. Subitamente, a mão do reflexo emergiu da água e agarrou com força seu pulso, puxando-a para as profundezas do lago, e para a escuridão.
Lá, Amana sentiu o seu corpo se contorcer e mudar dolorosamente; uma fome terrível cresceu em seu ventre, como se um buraco profundo estivesse sendo escavado por toda a angústia e humilhação que sofrera. Um vazio tenebroso que implorava e exigia ser saciado. Esse era o preço.
Amana aceitou.
Ela ressurgiu das profundezas, as escamas douradas de sua cauda refletindo os raios do sol. Piscou seus novos olhos — negros como a noite —, notando os pormenores do mundo como nunca antes.
Jovem mais uma vez… e bela e forte e faminta.
Escrito por Rafael Sanges e ilustrado por Ana Coelho
2021
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Superman
Teve uma que eu estava enfrentando o General Lux e aí, bem no meio do trampo, ela veio. Nunca cheguei tão perto de matar alguém. O infeliz não se rendia por nada, e eu precisando acabar aquele troço pra ontem! Agora que já faz algum tempo, admito: eu dei um soco e pensei "se quebrar o pescoço, quebrou." Por sorte foi só um traumatismo craniano e uma reconstrução de maxilar. Ele caiu duro no chão e eu sai correndo, nem fiquei para os aplausos. Maldita, sempre escolhe hora que estou de uniforme. Aí pra tirar a bota, a cueca, o collant... acho que perdi mais roupas para o toalete do que na função.
Já enfrentei de tudo, pode falar: parasitas intergalácticos, robôs gigantes, bilionários com verve autoritária, até certos governos que hoje não estão mais entre nós (outros tempos). Mas se tem uma coisa que me derruba... é uma caganeira.
Certo dia foi uma crise tão demorada, me deixando agoniado, que usei toda a força pra botar pra fora. Bateu três pontos na escala Richter. Foi um estrago e tanto. Para evitar esse tipo de coisa eu já tenho um revestimento de kryptonilea no assento da privada, mas naquele dia nem isso conteve a angústia. O governo pediu para de agora em diante ir à Lua quando a situação estiver muito ruim. "Uma cratera ou outra a mais, ninguém vai notar," disseram.
Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Marina Benigno
2021
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Flores e Dores
Que dor
pensar que um dia morreremos
e tornaremo-nos parte de uma grande,
única coisa,
esse novelo de plasma que se desfaz em almas
só para regressar ao todo, cheio de si.

Sinto-me enganado.
Não quis amar você como quem ama a si próprio.
Minha intenção não era sucumbir
à forma como faz que eu me sinta,
mas cair de amores pela coisa outra que lhe vejo
— que pensei ser você.
Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Camilla Muniz
2021
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LAR
Está descoberto e comprovado: mais que da soma de quatro paredes com um chão e um teto, é dos pequenos ângulos onde as paredes se encontram que se extrai o genuíno sentimento do lar. Cientistas seguem em busca de mais informações para curar os viajantes intergaláticos da saudade eterna de casa, mas agora esbarram na desafiante descoberta de que, quanto mais longe se vai, mais espalhados e mais microscópicos se tornam os fragmentos de saudade, deixando muito mais complexa a tarefa de juntar os pedaços. A promessa de avanço nos estudos reside sobre a análise daqueles curiosos indivíduos que aglutinam sua noção de lar em poucos detalhes — de preferência os mais simples. Novidades esperançosas são extraídas do voluntário 23, por exemplo, que concentra toda sua nostalgia em memórias de cavucar a verruga no ombro da mãe; e muito se espera da voluntária 17, cuja grande memória afetivosensorial é a do pão na chapa com manteiga e café antes da escola.
Enquanto a Nostalgina segue impatenteável, viajantes buscam consolo na estranha tese de que a saudade é combustível até dos foguetes que se afastam, e os mais conservadores chegam ao extremo de declamar que apenas com a preservação absoluta da saudade é que um dia inventaremos a máquina do tempo.

Escrito por Renato Baroni e ilustrado por Ana Coelho
2021
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Quando eu era mais nova​​​​​​​
Quando eu era mais nova
vi uma moça passando na rua com caixas de leite
ela tinha cacos de vidro no lugar dos olhos
e não sei por que
mas lembro de tê-la achado tão
adulta
admirável
quem eu queria ser
um dia

hoje já não sei
se confundi dor com força
e tristeza com plenitude

seja como for,
hoje sou eu quem carrega caixas de leite.
Escrito por Carol Façanha e ilustrado por Camilla Muniz
2021
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